Casas para o Brasil
Dia desses na reunião de apresentação do nosso mais recente projeto residencial – uma casa na mata atlântica do litoral norte de São Paulo – estávamos conversando sobre o erro de se fazer uma casa “bloco único” no lugar em questão. Na verdade, estávamos batendo papo de buteco mesmo, já que havia consenso entre os clientes e os arquitetos neste aspecto.
Pessoalmente, acho estranho a fixação inconsciente por caixinhas que os atuais citadinos têm. Acordam na caixinha do apartamento, saem na caixinha do hall, entram na caixinha do elevador, seguem na caixinha de metal do veículo, chegam na caixinha do subsolo do edifício corporativo – normalmente aqueles abomináveis de vidro espelhado - pegam novamente a caixa elevatória, chegam na caixinha do escritório, que nem janela tem, uma caixa “à vácuo”. Repetem o ciclo de forma inversa no fim do dia. E recomeçam a gincana das caixas no dia seguinte, e no dia seguinte.... Com “encaixes” de caixas para comer, tomar café, ver um filme. E quando podem, num feriado prolongado, ou férias, pegam 5 horas de trânsito dentro da caixinha com rodas para irem à sua caixa de praia, digo, casa de praia!
Nada disso tem a ver com questões de desenho, ou formato, o problema é não viver o meio, não viver o lugar, me explica por que você teria o trabalho de se deslocar por horas para se fechar em um bloco, que pode ser um lindíssimo bloco, mas, se não cria uma relação franca com o entorno, se não proporciona a vivência do lugar, ele podia ser muito bem em qualquer outro lugar, inclusive, em um terreno urbano, de tão hermético.
Daí não faz sentido ter uma casa na praia, na verdade mesmo, sentido é um item em falta em muito do que habitualmente temos.
Na reunião lembrei de uma entrevista que um arquiteto chileno deu ao jornal Folha por motivo de um projeto seu no Brasil, fez uma crítica tão breve quanto doída. O ano era 2010, lembro de ter lido o pequeno parágrafo que fez a cabeça estudantil questionar profundamente sobre os valores de uma boa arquitetura tupiniquim. O algoz a dar a entrevista era Alejandro Aravena, na época gerando um misto de debate e deslumbre com suas meias – casas de destinação social. O que mais tarde iria render-lhe o prêmio Pritzker – a maior honraria da arquitetura - exatos seis anos depois desta entrevista.
Quando questionado sobre a hipótese de um isolamento (falta de debate) da arquitetura brasileira, no sentido do auto-referencialismo histórico, responde:
"...os anos 1970 foram o último momento poderoso da arquitetura brasileira. Os termos com que se discute arquitetura no Brasil são de 20, 25 anos atrás.
É um cruzamento de isolamento com autocomplacência. Não consigo entender como, em milhões e milhões de metros de arquitetura imobiliária e com o clima que o Brasil tem, tudo é fechado. A arquitetura do Brasil parece o pós-modernismo italiano dos anos 1980. Parece que os arquitetos sonham com o clima mais frio da Europa."[1]
E é exatamente neste ponto onde gostaria de continuar a nossa exploração. O clima.
Se compararmos com os demais países, podemos considerar que o Brasil tem um dos climas mais amenos ao longo do ano. São poucos os dias – contados nos dedos - em que colocar a cara para fora da porta torna-se um ato de bravura. Prova disso é que o nosso método construtivo não sentiu a necessidade latente de desenvolvimento em relação ao isolamento térmico, e ainda construímos de forma precária, mas isso já é assunto para outro texto, o ponto é que no Brasil – principalmente no Sudeste - boa parte dos dias estaremos mais confortáveis sob a sombra de uma árvore do que dentro de uma construção.
E o sentimento de conforto pode ser explicado por diversas vertentes, mas vou tentar sintetizar a sentir-se bem. Partindo desta síntese devemos entender o ser humano como um animal, não se sinta ofendido, no auge de nosso antropocentrismo não flui natural ler que é um animal, por mais natural que seja. Sim você faz parte de uma espécie animal que habita a terra cerca de 200 mil anos, sem contar demais espécies de ancestrais comuns.
E este animal, o homo sapiens viveu 99,99% de sua existência em contato contínuo com o meio natural, com a natureza. Olhava o céu, andava por entre a vegetação, ouvia os sons que emergiam da mata, tomava chuva, entrava nos rios, prestava atenção aos sinais dos ventos, dos pássaros, das plantas, afinal, sua sobrevivência e prosperidade dependia diretamente desta habilidade.
O desenvolvimento tecnológico exponencial, somado (e por motivo) ao sucesso das cidades às expensas de um êxodo rural global, culminou em uma quebra abrupta de cenário do habitat humano. As espécies se adaptam à mudanças em milhares de anos de desenvolvimento, não o é comum em um espaço de apenas algumas gerações. Deixamos de ter contato com a natureza, e não nos preparamos para isso.
Há alguns dados que podem corroborar esta teoria. Como por exemplo, a alta de prevalência de transtornos mentais em zonas urbanizadas. Relação que foi explorada no artigo científico “Urbanization and mental health” que relacionou a densidade de urbanização com a saúde mental[2]. Seria possível afirmar que as metrópoles, cidades, bairros e casas que privam o nosso contato cotidiano com a natureza não fazem bem a esta espécie animal – o homo sapiens?
A Phd em Psicologia Holli-Anne Passmore da University of British Columbia constatou que sim. Em experimento[3] recente, a pesquisadora dividiu 395 pessoas em 3 grupos, o primeiro grupo deveria diariamente tirar uma foto de um elemento natural, e escrever uma pequena nota sobre os sentimentos que tinha ao prestar atenção a este elemento. O segundo grupo deveria fazer o mesmo, mas ao invés de elementos naturais, deveria selecionar elementos/ objetos feitos pelo homem. Já o terceiro grupo, não realizou nenhuma das duas atividades. A diferença no bem estar dos participantes – sua felicidade, senso de elevação, e o nível de conexão com outras pessoas, não apenas com a natureza, foi significativamente maior do que os participantes no grupo que notou objetos criados pelo homem, e no grupo que não realizou nenhuma das duas atividades.
Bom, sabemos então que o contato diário com a natureza faz bem ao homem – o que empiricamente sempre soubemos -, e amigo, por mais que atualmente estejamos em uma grande crise de auto-estima nacional, há o completo consenso que aqui a natureza foi generosa, somos um país de escala continental, com diversos biomas, cada qual com sua peculiaridade e beleza, de solo fértil e generoso, de uma beleza que emociona. Conhecer a mata atlântica, com sua diversidade de folhagens, escalas, ruídos, frescor, texturas e cores e manter-se indiferente é impossível.
Na arquitetura temos um conceito chamado “partido”, ou “partido arquitetônico”, que nada mais é do que construir uma narrativa concisa e potente o bastante a ponto de ser capaz de sustentar todo um projeto de arquitetura em torno desta ideia. Esta ação dá legibilidade, e concisão ao projeto arquitetônico. Caso o partido arquitetônico não tenha raiz profunda o suficiente, dificilmente será produzido um projeto relevante. Montando uma equação rápida, que pode servir de base para a reflexão do partido arquitetônico de uma casa no Brasil, temos de um lado, alta prevalência de transtornos mentais em ambientes urbanos, que podem ser resultado - ao menos parcialmente – da privação de contato com a natureza, que comprovadamente influencia positivamente nosso bem estar, quando temos o potencial de criar espaços intermediários, abertos e verdes, tanto pelo nosso clima ameno, quanto pela nossa flora generosa.
Essa é uma visão particular de quais valores são preciosos demais para serem desconsiderados no processo de produção de uma casa no Brasil. O espaço intermediário, ou o espaço-aberto é a antítese da caixinha, é o convite à contemplação, ao respirar fundo, um convite à vivência do meio, que – desculpem-me os tecnocratas - sempre será maior que qualquer invenção humana.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1907201021.htm
[2] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2996208/
[3] https://news.ok.ubc.ca/2017/11/02/science-confirms-you-should-stop-and-smell-the-roses/